Thássio Ferreira: poeta e ficcionista, autor dos livros (DES)NU(DO) (2016), Itinerários (2018 — obra vencedora do I Concurso Literário da Ed. UFPR) e agora (depois) (2019), todos de poesia; e Nunca estivemos no Kansas (2022), de contos. Escreve a coluna Alguma coisa em mim que eu não entendo, na Revista Vício Velho, e possui contos e poemas em publicações como Revista Brasileira (Academia Brasileira de Letras), Jornal Rascunho, Escamandro, Gueto, Ruído Manifesto, Mallarmargens, Germina, Revista Ponto (SESI-SP) e InComunidade (Portugal). Vencedor dos prêmios Off-Flip 2019 e Cidade de Manaus 2020, e finalista do Prêmio Sesc 2017, todos na categoria contos. Mantém os perfis de instagram @thassiof e twitter @thassiogf.
A vó e eu
Eu me lembro da gente subindo a serra: o vô, a vó, as cinco netas e eu, no fusca azul, depois no fiat 147 vermelho, feito um navio pirata singrando a Terra do Nunca rumo à casa de quintal grande, limitado pelo riacho a descer beirando a entrada do que viria a ser o parque. O piso frio que os sapos achavam muito convidativo; a cristaleira fechada a chave guardando os tesouros da vó — que mais tarde fui descobrir não valerem nada. O vô chamava de sítio. Mas não era, ainda.
Cavo longe porque a alegria funda dessa memória é o que ela sempre foi pra mim: a vó. À noite, ela nos levava pra olhar os vaga-lumes, mãos mornas do chocolate que nos preparava pra enfrentarmos o sereno: nescau pra mim e pra mana, bem preto, nesquick pras primas, bem ralo, ela sabia o ponto certo que agradava a cada. Mas importam menos essas lembranças difusas do que os depois. Desde que o vô morreu, ela foi comprando os terrenos dos vizinhos, meio passando-lhes a perna, me disseram mais tarde: ela já sabia da criação do parque.
Foi endurecendo, a vó. Com a gente, com o mundo. Se assenhorando. Ou fui, fomos, percebendo mais. Ainda me apeguei um tanto àqueles tempos de felicidade sem poréns, sorriso farto, mãos carregadas de afagos como carregadas de água em concha sem nunca secar. O oposto do chavão: ídolos de pés de barro. A vó tinha as mãos do barro da infância, em que a gente escorrega e se lambuza na chuva, despreocupados, descalços, o franzino peito nu. Mas pisava cada vez mais duro, toda chumbo, toda coturnos, e não dava pra não ver.
Jacira aguentava o pior, sei nem como. Dia inteiro na casa, tantos anos, e agora bastava atrasar o almoço, mudar um bibelô de lugar, pra vó quase rosnar: Você é burra, mulher? Tinha que ser… Olha que pra encontrar outra não custa…
Pros netos ainda guardava ternuras, curtas, enquanto a acidez transbordava da língua. Mas causava-me um nojo indisfarçável receber qualquer chamego de quem acabara de cuspir algum ódio gratuito, crueldades, mesquinhezas. Que abundavam. A face do nojo foi nos afastando. Logo eu, caçula, xodó, o mais entusiasmado à infância, mais apegado, único homem pra levar adiante o sobrenome, segundo o entendimento da vó.
Deixei de ir no sítio no dia em que a Marildes veio contar da gravidez da filha menor: os dentes querendo se mostrar mais que de costume, num contentamento meio sem jeito. Olhou a caseira de cima a baixo, balançando devagar a cabeça, os cantos da boca repuxados pra baixo, e deu as costas, entrando na casa. Pra fugir daquela não-resposta vir cair no meu colo, Marildes ali fechando os panos do sorriso, entrei também. Sem nem estancar as passadas, caminho da suíte, mandou meu tio dar o recado: Não quero essa criança brincando no meu jardim.
Quando a mana voltou do intercâmbio, a vó deu um almoço. Fiz questão de chegar atrasado, e fiquei ainda menos tempo do que planejava: enquanto eu me servia, a mesa toda comendo, alguns no segundo prato, ela reclamava de que o governo tinha mudado as regras da pensão do vô, e agora não teria mais o aumento anual dado aos funcionários vivos. Como se precisasse. Emendou contando que a Jacira tinha quebrado dois copos naquela semana. Se fosse um, tudo bem, mas dois?! Vou ter que descontar do salário dela. Devolvi a concha à travessa e alcancei o bolso: peguei a carteira, pus a maior nota que tinha embaixo do prato e fui embora, pra não pisar mais ali também.
Ela não compreendia, e oscilava diante da minha recusa: entre amolecer, só um pouco, telefonemas, frases cândidas, e tentar me subjugar como agora fazia a todos, à força da idade, do dinheiro, da brutalidade sem freios que sua fala adquirira como um sotaque tardio. Quando fez uma doação vultosa à ONG onde eu era voluntário, me ligou. Agradeci secamente e inventei alguma desculpa pra desligar logo, sem lhe dar tempo de replicar.
Eu tinha razão, a mãe dizia, mas a minha razão era um tapa. Não se estapeia assim alguém da família, meu filho. Todo mundo tem defeitos. Mas família é família. Minha irmã, as primas, tios e tias também vieram falar-me: quando se enfurecia comigo, a vó descontava neles. Que não queriam perder suas benesses: cães ávidos. Até que ela desistiu, eu também. A vó tornou-se a lembrança de suas mãos, enquanto ainda colho meus privilégios pelas da mãe.
A mana se espanta: acha migalhas. Talvez um dia se torne como a vó. A cupidez faz vingar um tipo muito próprio de epitélio sobre nossas mãos. Eu prefiro meu nojo, e sei que ele também é um privilégio: o de poder dizer não.
Porém, recentemente, tem ensaiado novas tentativas. Talvez por essa minha ousadia mesmo, talvez sei lá pelo quê, ela me respeita mais, eu acho. Tenho dançado junto, hesitante. Agora deu pra beber. Sempre bebeu, mas agora: cada vez mais. É uma merda falar assim da vó da gente. Esforço-me em controlar o asco, ao ponto que o amor exige e minha consciência e sangue quente conseguem. O amor pode exigir infinitamente, mas cada um paga apenas o que se permite.
Então foi pra mim que ela telefonou, antes de qualquer um. Antes até da ambulância, ela mesma disse, a respiração descompassada. Sim, estava bem. Sim, sabia onde estava.
— Vó, se acalme. Chame o SAMU, um nove dois, ou os bombeiros, um nove três. Me ligue em seguida. Estou indo praí.
Cheguei antes da ambulância. Ele já estava morto. Ela não me agradeceu por ter ido. Mas segurou-me as mãos entre as suas de um jeito.
— Eu não bebi, Gustavo. Não bebi.
Seu hálito parecia normal, mas já me enganara antes. É uma merda falar assim da vó da gente.
Inverti as posições de nossas mãos, acolhendo as dela entre as minhas, e notei estarem quase mornas, apesar do frio. Perguntei-lhe novamente se estava bem. Ela, agora um tanto arisca:
— O que você acha?
Talvez reempedernida apenas com minha presença, o quanto possível na noite escura, à beira da estrada. Não estava mais sozinha a ter que lidar com o que fizera.
— Eu sei, vó, quero saber se não está machucada — falei com alguma suavidade, fazendo-me um tanto desentendido. Eu fora lá ajudar, afinal.
— Não, não. O airbag. Ele saiu do meio do mato, Gustavo, não deu pra ver. Eu não estava correndo. Ele simplesmente atravessou a pista. Eu tentei frear, eu… Eu não sei o que houve.
Apertei-lhe as mãos. Abracei-a.
— Vou ligar pra polícia.
— Não é melhor esperar a ambulância?
— Não, vó.
Enquanto eu falava ao telefone, ela também sacou do celular e se afastou. Quando terminamos, indaguei:
— Avisou a mãe?
— Não. Aqui já é Rio Pardo. Eu conheço o delegado.
De novo.
Hesitei um pouco sobre o que dizer. Precipitei-me:
— Você não devia ter feito isso.
Como se eu soubesse o que deveria ser feito. Como se minhas desconfianças (de quê, exatamente?) matematizassem os únicos gestos corretos: os que eu tomaria. Talvez não só a mana, mas também eu, um dia, de algum modo, me torne como ela, arrogantemente apegado a meu próprio jeito de mover-me no mundo, ao ponto das insensibilidades. Dois injustificados na estrada escura, tentando nos justificar. A vó pareceu farejar minhas dúvidas, e disse quase entredentes, controlando a raiva:
— Não me diga o que fazer. Você não sabe o que é lutar pra sobreviver, Gustavo. As marcas que deixa. Quando a gente sobrevive, e conquista algumas coisas com esforço, ao contrário de você, que sempre teve do bom e do melhor, a gente é capaz de muito pra não perder o que tem. Eu não fiz nada de errado, nem dirigindo nem ligando pro delegado. Pro delegado, ora! Ele vai mandar alguém. Agora sim vou avisar sua mãe e seus tios.
Calei. Quando desligou novamente o celular, não se aproximou de imediato. Ficamos um tempo ali, antes da ambulância, antes da polícia, na distância estranhamente familiar que já conhecíamos. Eu quem devia tê-la alcançado, mas eu esperava: inerte, silencioso, silenciado. Depois de um tempo, ela chegou mais perto. Não buscou minhas mãos dessa vez.
— Eu não fiz nada errado.
Era difícil avaliar se o tom duro se dirigia apenas a mim, ou também a si própria. Antes que eu pudesse responder, ouvimos as sirenes. A ambulância e a viatura chegaram praticamente ao mesmo tempo. Segurei-lhe as mãos. Frias.
Os paramédicos confirmaram o óbito, enquanto o policial se dirigia a nós. Respeitosamente. A vó explicou o acidente, repetindo que o atropelado saíra do mato, do breu, sem lhe dar tempo de frear. A voz de novo firme. Senhorial.
Ele parecia muito pouco interessado. Ao levantar a cabeça do bloco de anotações, falou com displicência:
— Tá tranquilo. Vou ter que fazer ocorrência, mas essas coisas acontecem.
A senhora fique despreocupada. Não vai dar nada não.
“Tá tranquilo”. Um homem morto. “Fique despreocupada”. Um homem morto! “Não vai dar nada não”. Eu quis dizer que não, porra, que ele fizesse aquilo direito, um homem morto!! Mesmo sem culpa, ela matara um homem, e nem sabíamos se não era culpada de algo, era possível, era bem possível, não custava essa velha filha da puta se angustiar um pouco, sentir medo, um pouco só!
Mas talvez o privilégio da covardia tenha se entranhado mais fundo em mim do que meu sangue quente consegue lavar: permaneci calado até que todos fossem embora, com as mãos dela entre as minhas. Ao entrarmos no carro, lembrei Marildes, na grama, antes de eu lhe dar as costas pra seguir a vó porta adentro. Enquanto eu dirigia, sem nos falarmos, toda vez que sondava seu rosto, com o rabo do olho, encontrava-o com a mesma expressão de concreto armado: impassível, mirando à frente. Nenhum de nós se lembrou de perguntar o nome do homem que deixamos pra trás, morto.
No (meio do) caminho
Íamos de La Barra para Olvidado, num ônibus dois andares razoavelmente confortável. Quase nenhuma poltrona vazia.
Eu escutava mais línguas do que era capaz de identificar, em meio a gente de todos os traços. Seis horas de viagem, me haviam informado no balcão.
Sentei-me à janela e tirei as botas, pousando os pés cansados sobre elas enquanto contraía e relaxava os dedos. Lá fora, a paisagem de estepe corria feito borrões e pingos, confundindo tons variados de marrom, verde, amarelo, ocre. Ao fundo, montanhas de cor indefinida de lonjura, e acima do horizonte,
o azul intenso.
Pus as costas da mão no vidro: frio, para minha surpresa, pois sentia o rosto quente pelo sol que se esparramava justamente sobre este lado do veículo,
na inclinação das quase onze. Talvez obra do vento? Eu já estava por aquelas bandas tempo bastante para saber do que eram capazes as correntes de ar vindas do norte.
Quanto tempo desde que os pneus começaram a lamber o asfalto? As conversas multilíngues amainadas. Então o veículo se desacelerou lentamente e parou.
No meio de onde? (só não digo “do nada” porque não existe o nada).
O motorista subiu ao segundo andar e veio caminhando — sem nenhuma expressividade no rosto ou nos gestos — até a poltrona à minha frente. Postou-se diante do banco vazio, olhou para o rapaz sentado à janela, para o papel em suas próprias mãos, e disse baixo:
— Eres tú. Tienes que bajar.
O rapaz olhou-o de volta, incompreendendo. Arriscou:
— ¿Qué?
O motorista, impassível, repetiu:
— Eres tú. Tienes que bajar.
E apontou ao rapaz o papel que segurava e a numeração no painel acima da poltrona: 36 V (de ventana). Era ele. Tinha que descer. ¿Qué?
O rosto branco parecia mais branco, talvez prestes a um (es)pasmo de medo.
A língua ensaiou resistência, debatendo-se na boca com sílabas que nitidamente lhe eram difíceis pronunciar:
— Pe–ro compré el bol–eto…
— Sí — o outro interrompeu — Mira tu boleto. Vienes hasta aquí en este bus. Y ahora tienes que bajar.
— Puedo pagar la diferencia…
— No es posible. Tienes que bajar — e acrescentou ao fim, em tom mais grave: — Es una orden.
Depois da língua, recolhida agora à impotência da boca, as mãos: espalmadas para cima, como quem recita o pai nosso, gesto mudo a dizer E o que faço?
O resto do ônibus em silêncio. Eu mesmo em silêncio. O motorista suavizou levemente a dureza do rosto e da voz:
— No te preocupes.
¿No?
Antes que alguma outra reação se esboçasse, alcançou o casaco do rapaz, na poltrona do corredor, e arrematou:
— Vamos.
Num ímpeto, ouvi minha própria voz pronunciar a pergunta, que se feita a mim eu não saberia responder:
— ¿Pero: por qué?
(Por que eu me intrometia? Ora, por-que… E por que mais ninguém? Ora, por-que…)
Ao virar-se, a dureza voltara a seu rosto, o queixo uma bigorna, e a voz se levantou ainda mais ríspida:
— Porque sí. Es una orden.
— Entonces voy con él.
¿Por qué? Porque sí.
O motorista esticou o lábio inferior ao mesmo tempo em que diagonalizava a cabeça alguns graus e levantava os ombros outros tantos. Pouco se lhe dava.
Descemos em silêncio, eu e o rapaz desconhecido. O ônibus retomou sua marcha até se distanciar, enquanto mirávamos com olhos apertados pela claridade e as bocas secas.
Voltei-me para ele e o abracei. Sorrimos, simplesmente. Até onde a vista (não) chegava, seria uma longa tarde sob o sol.
Foto de Leopoldo Cavalcante.